André Porto

Papel é resistência

Publicações artesanais em tempos digitais e livros em meio a uma crise editorial: conheça Ricardo Rodrigues, criador da Experimentos Impressos

Quando a sua gaveta ficou abarrotada de contos rascunhados, Ricardo não comprou um móvel novo. Em 2016, Ricardo fundou o selo de publicações independentes Experimentos Impressos, para enfim materializar seus textos de uma forma mais completa. E por "forma mais completa", entenda algo que contemple uma infinidade de processos, desde a primeira linha escrita até o acabamento final do encadernamento, tudo com as próprias mãos — literalmente.
Com publicações que abusam de processos manuais, Ricardo Rodrigues e a Experimentos Impressos chegaram ao seu limite de produção na mesma época em que o mercado editorial tradicional brasileiro vive uma das suas maiores crises. Não estar nas livrarias e, assim, longe do olho do furacão, se revela como uma oportunidade para quem faz parte do mercado independente. E a previsão do tempo alerta: "não estamos vivendo uma onda, que vai passar em alguns anos. As formas de participar do mercado editorial vão se modificar."

Quem vive às custas do papel em tempos digitais corre o risco de ser acusado de ultrapassado. Ao entrevistá-lo e conhecer de perto a força e o calibre daquilo que é feito com requinte e qualidade atualmente, é inegável que Ricardo está à frente do seu tempo.

Em tempos de mudanças e inseguranças, Ricardo é um monte de coisas ao mesmo tempo — e sabe o que está fazendo. Além de saber e fazer, conta muito, nessa entrevista, sobre suas percepções de mercado editorial independente e as vantagens de se autopublicar, sobre processos criativos, o poder do papel, feiras gráficas e muito mais.
Sobre a crise do mercado editorial no Brasil: em uma reportagem do Bolívar Torres sobre alguns circuitos alternativos que escritores estão explorando atualmente para vender livros apesar da crise, é dito sobre o poeta Kintê: “a crise […] não fez nenhuma diferença para o poeta-feirante porque Kintê, assim como inúmeros autores oriundos da periferia, não está nas livrarias.”

Assim como o habitat natural de Kintê são as ruas, em distritos da Zona Sul de São Paulo, como Capão Redondo, Grajaú, Campo Limpo, as publicações independentes não estão nas livrarias.

Quais são as vantagens de se estar fora do olho do furacão?

É bem isso que tem representado o mercado editorial nos últimos anos: um furacão.

O escritor independente realmente não está nas livrarias, mas não sei ao certo se isso é uma vantagem ou não. Na verdade, acaba sendo uma oportunidade porque a crise vem gerando um grande debate sobre novas frentes de trabalho e é isso que o pequeno escritor e o pequeno publicador pode aproveitar. Se o mecanismo da indústria vigente não é favorável, ele vai encontrar naturalmente uma forma de se colocar nesse mercado.

Não chega a ser uma questão de contracultura: é simplesmente aproveitar uma oportunidade de se inserir no mercado. Nos últimos dois anos, vimos uma retomada das pequenas livrarias; há uns cinco anos ou mais, editoras independentes vem surgindo no mercado e oxigenando a indústria, trazendo produtos inovadores e criativos.

É certo dizer que há uma pontinha de otimismo no meio desse cenário de crise
para as pequenas livrarias e para os editores independentes?

Para nós, o cenário atual é de fato promissor. Cabe dizer que o mercado independente, o pequeno publicador, o pequeno autor sempre existiram. Não é algo novo, criado com essa onda da crise das livrarias. Sempre teve alguém produzindo às margens, fazendo fanzines, fazendo livros e pagando do próprio bolso.

Na realidade, a grande novidade é o quanto isso vem sendo falado, justamente por causa dos problemas que observamos. Discute-se mais sobre o mercado editorial e é necessário porque vivemos um novo contexto. Estamos embalados por problemas e a gente está redescobrindo formas de se inserir e de trabalhar. Há muito o que ser explorado.

Quando eu converso com amigos da área, é quase unanimidade: não estamos vivendo uma onda, que vai passar em alguns anos. As formas de participar do mercado editorial vão se modificar. Feiras gráficas são vetores fortíssimos que impulsionam o trabalho que a gente faz. No meu caso, por exemplo, as feiras são o principal canal de distribuição e a melhor oportunidade de ficar frente a frente com quem se interessa com esse mercado específico. É uma ferramenta muito importante. Não sabemos se esse modelo vai ter uma durabilidade muito grande, apesar de anualmente surgirem novas feiras. O mercado vai continuar se redescobrindo e, ainda que as feiras cheguem ao seu limite, o mercado independente vai se regenerando e encontrando formas de continuar existindo. Esse é o espírito do ator independente desde sempre e vai continuar sendo, de uma forma ou de outra.
Sobre feiras: já fui em várias e o clima é sempre muito positivo, com pessoas interessadas no que estão conhecendo e os produtores sempre muito dispostos e orgulhosos. Parece uma mini catarse coletiva!

É isso mesmo ou é só uma mera impressão romântica? Qual é a realidade de quem conhece as feiras de perto? É o auge para quem vive de publicações independentes?

A gente se sente quase numa espécie de transe. Estamos tendo contato com o núcleo puro de quem está trabalhando de forma independente porque reúne produtores de todo Brasil e até da América Latina, Europa ou Estados Unidos. Temos contato com o mercado puro como ele é; conseguimos trocar ideia, ver o que está sendo feito em outros lugares, o que as pessoas estão adotando como técnica, o que elas estão fazendo no quesito manual. É muito enriquecedor.

Trocando ideia, a gente consegue conhecer até o posicionamento das pessoas. Ano passado, por exemplo, eu lancei o Kit Gay Para Adultos e se tornou uma publicação que causou um pouco de polêmica — era época das eleições. Inclusive, lancei em Brasília e todo mundo parava, mesmo que não comprasse, mas parava pra falar sobre tudo que aquilo ali implicava e sobre o quanto era legal ter uma publicação que abordava aquele assunto. A gente sente que o dever foi cumprido.

Não é só o processo puro e simples de pegar uma história e colocar no papel e colocar numa banca pra vender. É legal quando a gente consegue estimular alguma coisa em quem está lendo; esse momento é realmente muito importante. A feira gráfica é algo que eu não abro mão, apesar de ser um trabalho bem cansativo. É o melhor momento para quem produz de forma independente. Eu sempre digo pra quem está começando a trabalhar com isso: não deixe de participar, por mais cansativo que seja. Esse é o momento chave para quem trabalha por conta própria.

Como é o processo de concepção de uma nova publicação na Experimentos Impressos? Existe alguma parte desse que você tem um carinho especial?

Existem muitas formas de trabalhar. O meu projeto já existe há três anos e foi criado para materializar meus textos no papel porque eu já tinha muita coisa espalhada na internet, em blogs, posts e redes sociais. Eu queria ver isso impresso e sempre tive muita ansiedade por produzir. Fiz muita coisa no primeiro e no segundo ano e hoje já são mais de cinquenta títulos. Alguns, feitos de formas experimental, ficam só para mim. Muitas coisas foram rodando em feiras e não foram reeditadas. Ainda tenho um ritmo de criação muito grande e os processos são muito variados.

Posso criar o aspecto visual para um texto já escrito ou o contrário. Já fiz concepções físicas de uma obra e só depois fui fazer o texto. É mais difícil porque você fica preso naquele conceito visual que foi criado, mas acaba funcionando também. O Carne Fresca foi o primeiro caso desse método: criei primeiro a concepção estética do livro para depois materializar o texto. Já tinha a ideia textual mas só desenvolvi a partir do visual.

No meu processo de criação, gosto muito de fazer pesquisas em papelarias. Tiro uma tarde para entrar numa papelaria sem ter a menor ideia do que vou comprar e pesquiso os materiais que têm por lá: papeis, pastas, etiquetas, presilhas… E aí a ideia é ressignificar esses materiais, buscando uma forma de transformá-los em uma publicação. Atualmente, estou trabalhando em um projeto que foi feito a partir de uma pasta fichário. Esse é um dos principais meios de criação que eu uso hoje em dia. É bacana porque é um exercício de criação que dá para descobrir muitas ideias. Tenho uma fila de materiais guardados que eu ainda nem usei.


Em alguns livros da Experimentos Impressos, como o “Anatomia Afetiva de Bolso”, tanto as colagens quanto os contos são assinados por você. É necessário um nível certo de distanciamento com publicações que você cria? Até onde você se envolve quando se trata de publicar o que é de sua autoria?

Até o momento, tudo que eu publico são textos meus. Essa é a vantagem de se autopublicar: você toma conta de todas as pontas do seu processo de criação. Tenho o meu texto, vou pensar no projeto gráfico, numa capa, no tipo de papel mais adequado, na impressão. O Atlas de Anatomia é um livro que me consumiu mais ou menos três meses só de planejamento. Pesquisando material, qual técnica eu usaria pro papel ficar mais velho, como o título seria impresso na capa. Enquanto pensava em tudo isso, abria mão de outras ideias para que o preço ficasse justo.

Muitas etapas são pesadas para se fazer sozinho, mas eu gosto muito de fazer. Eu faço de tudo: texto, edição do texto, projeto gráfico e até o acabamento manual e a encadernação, que eu aprendi para poder dar a cara que eu queria. Quando eu tenho a ideia muito na minha cabeça, só eu consigo executá-la exatamente como eu quero. Essa é uma vantagem de trabalhar dessa forma.

Por outro lado, uma das dificuldades é não conseguir fazer isso com uma gráfica de grandes proporções, por exemplo. Com gráficas digitais, conseguimos fazer a impressão dos miolos dos livros em pequenas quantidades e fazer o acabamento em casa.

(Para alguém que trabalha com papel, talvez o próximo questionamento seja de resposta óbvia; mas talvez, também por causa do seu ofício tão íntimo com o impresso, seja muito proveitoso entender melhor seu ponto de vista.)

As ameaças ao futuro do papel existem há um bom tempo e seguem se
mantendo como ameaças não concretizadas — a Experimentos Impressos é um ótimo exemplo dessa resistência.

De onde vem esse poder tão grande do impresso físico?
Da mesma forma que a gente teve outras tecnologias que foram substituídas mas voltaram, temos o papel como fator de resistência. Ele nunca deixou de existir. Tivemos a substituição do vinil pelo CD, do VHS pelo DVD; surgiram os e-books, todas as tecnologias digitais e o livro nunca sumiu. Continuou ali sofrendo ameaças, mas seguiu resistindo. Em diversos momentos, quando todo mundo imaginava que fosse sumir, ele continuou cumprindo seu papel. Tem alguns segmentos que seguem muito forte com o impresso, principalmente a educação. A literatura também. Isso acaba impulsionando quem trabalha de forma independente porque a gente foi buscando formas diferentes de imprimir. Hoje tem gente que imprime com mimeógrafo, que faz o livro todo com máquina de escrever… é uma gama de possibilidades muito grande. As pessoas ainda têm um fascínio por ter livros em mãos, apesar dos e-books. O livro físico exerce uma sedução muito grande e eu compartilho dessa impressão. Pra mim, foi um processo muito natural partir para a produção deles.
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