Sobre o 'Cadáver Exquisito' de Bella Baxter

Feb 9 / Raquel Pellicano
Há uma semana assisti ‘Pobres Criaturas’, estrelado por Emma Stone — Bella Baxter e sua história ganharam meu coração, não sem antes me prenderem, hipnotizada pela tela. Já há muito não sentia que a visita ao cinema valia o esforço e o gasto. Mas esta é, de fato, uma provocante alegoria social, que merece ser vista em grande escala. E revista, inclusive.

É importante ter em mente que, qualquer tentativa de comentário de minha parte será sempre insuficiente e injusta com este filme, inspirado no livro de mesmo nome, de 1992, escrito pelo escocês Alasdair Gray.

A criatura Frankenstein Bella, é mostrada em duas etapas distintas da vida: o seu precário desenvolvimento na casa do médico e cientista que a criou (que ela mesma chama de ‘Deus/God’) e as suas aventuras em busca de conhecer o mundo.

Aqui vale um pequeno adendo, já que fica difícil seguir com a minha fala sem explicar a origem de Bella: após encontrar uma mulher morta por suicídio, grávida, o cientista Godwin Baxter a trouxe de volta à vida, inserindo o cérebro da bebê em sua cabeça. Portanto, ao acordar, Bella, apesar de ter um corpo de mulher, contava com uma mente de bebê, e passou a maior parte da sua existência presa dentro da mansão de seu criador cientista, até tomar a decisão de partir para uma aventura, na qual, pouco a pouco, foi desenvolvendo sua capacidade intelectual e conhecendo as belezas e amarguras do mundo.

Mundo este de uma dimensão extravagante e fantasiosa, onde enxergamos questões e referências do passado e do futuro, no mais belo caldeirão retrofuturista: a cenografia, embora em vários momentos pareça diretamente saída de imagens desenvolvidas pela mais recente IA, com cores saturadas e detalhes surrealistas, em outros, nos leva direto aos palacetes do século 19 ou 18. Da mesma forma, o fantástico figurino, que muda à medida que Bella amadurece, constrói uma simbiose entre as mangas bufantes do período vitoriano e as mini-saias e sapatos contemporâneos, criando, para todos os efeitos, um universo que não pertence exatamente a nenhum tempo.
Imagem do filme 'Pobres Criaturas', onde Bella, com longos cabelos pretos, vislumbra uma Lisboa retrofuturista do alto de um miradouro, com céu azul e nuvens em tons rosa.

Imagem do filme 'Pobres Criaturas'.

Imagem do filme 'Pobres Criaturas', onde Bella, uma garota de cabelos longos e pretos, está olhando fixamente para o horizonte, sentada em um baú na frente de uma cama em um quarto de luz amarela.

Imagem do filme 'Pobres Criaturas'.

No que toca à fotografia, no início o filme acontece todo em um preto e branco de altíssima qualidade, com contrastes bem definidos e lindas imagens. É interessante acompanhar o explorar das possibilidades de entretenimento desenvolvidas na casa de um cientista maluco: de espatifar louças à tocar instrumentos desafinadamente com os pés, Bella tem ali o seu pequeno reino infantil, acompanhada de outras criaturas peculiares: um buldogue francês com corpo de galinha ou um ganso com corpo de cachorro.

Quando Bella parte para sua aventura fora das paredes de casa, o mundo adquire fascinantes cores intensamente saturadas, com um céu de eterno pôr-do-sol. As lentes se alternam entre grande-angulares olhos de peixe, com vinheta intensa quase que a funcionar como ‘uma luneta para outro mundo’, e imagens em tele-objetivas, com diafragma aberto e lindo bokeh. No seu explorar, Bella consegue vivenciar o mundo de uma maneira que nenhum de nós foi ou será capaz: sem as amarras ou influências da cultura, do patriarcado, das expectativas comuns de como agir enquanto um ser humano do sexo feminino. Sem as regras impostas pela sociedade relacionadas à como/quando/onde, Bella tem atitudes de total honestidade para com os outros e com seus próprios sentimentos.

Depois que Bella é repreendida por cuspir comida durante uma refeição chique, ela diz, claramente "por que eu deveria mantê-la na boca se é revoltante?". O que me faz questionar e refletir sobre como agiríamos e quais atitudes tomaríamos em vida se não nos desenvolvêssemos sob o véu da moral e dos bons costumes. É absurdamente lindo acompanhar Bella em suas descobertas das pequenas e grandes felicidades da experiência humana, que incluem, mas não se limitam a: dançar, comer, explorar novos lugares, transar, ler, filosofar, apreciar a música e se conectar com outras mulheres. Aqui vale um destaque para a sua vivência se perdendo na Lisboa retrofuturista, onde o elétrico (bonde) é voador, mas os pastéis de nata, que Bella aprende a comer em uma só bocada, e o fado, seguem deliciosamente emocionantes.

Nas cenas de intimidade e sexo, Bella causou um tremendo bafafá que dividiu opiniões. Muitos questionam a necessidade de tais cenas no audiovisual, entretanto defendo veementemente que, aqui, elas são parte importante do descobrir das delícias e amarguras da vida e não são meros acessórios sem sentido. Por último mas não menos importante, sempre penso no tamanho do desafio trazido pela produção audiovisual: para que um filme seja bom, muitas peças devem se encaixar. Do roteiro ao figurino, à produção, cenografia, atuações, tratamento de imagem, montagem, trilha sonora: este é um filme impecável! Corra para o cinema!

Ps.: eu não errei o título deste post. O Cadavre Exquis é um jogo coletivo de imaginação, praticado pelos surrealistas no início do século XX. O movimento surrealista francês – movimento literário, filosófico e artístico que explorou o funcionamento da mente, defendendo o irracional, o poético e o revolucionário – inaugurou o método cadavre exquis, que subvertia o discurso literário convencional. Um primeiro jogador escrevia uma palavra num papel e dobrava-o; o segundo escrevia uma outra e voltava a dobrar e assim sucessivamente. A seguir, desdobravam o papel e descobriam uma frase. O nome surgiu de uma frase que resultou quando o exercício foi realizado pela primeira vez: “cadavre exquis boira le vin nouveau”.

Raquel Pellicano - fotógrafa, artista visual e professora no f/508
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