May 10 / Raquel Pellicano

O sonho como matéria poética

Não vou esquecer o dia em que me vi em uma briga chatíssima com o então namorado, pelo simples fato de ter-lhe dito que genuinamente não gostava de Dalí, depois de visitarmos uma exposição. Ele não conseguia conceber uma pessoa que assumisse isso, e acreditava que eu estava influenciada pela opinião de meus professores da graduação de artes (provavelmente sim — mas as influências boas a gente abraça).
A verdade é que Salvador Dalí nunca fez muito a minha cabeça. Enxergo ele um bocado como o Romero Britto do surrealismo (guardadas as proporções e o exagero de minha parte, acalmem-se!): uma grande fórmula, que funciona muito bem comercialmente.

Podemos encontrar nesse trabalho uma importante lição de marketing: ele transformou seu bigode em uma marca registrada. Mas penso que o mundo é um tanto injusto com os vários artistas incríveis à sombra de Dalí. Você já explorou um pouquinho o surrealismo por outras lentes? Vem comigo pra um passeio:

Quanto tudo era mato

Para além de uma linguagem, o surrealismo era revolucionário. Seus artistas pregavam a liberdade de ação e espírito, muitas vezes atentos aos totalitarismos de regimes presentes no século XX. Na melhor definição do próprio André Breton, o surrealismo é “uma ação que nasce de um automatismo psíquico puro” que pretende levar ao pensamento sem filtro e genuíno, isto é, livre da censura estética ou moral.

A fotografia, estigmatizada enquanto um registro indelével da realidade, encontrou na linguagem surrealista um caminho de se provar expressão.

Nas mãos de artistas como Man Ray, André Kertesz e Fernando Lemos (um representante sensacional de Portugal nessa sopa surrealista), imagens fotográficas técnicas deram lugar às experimentações, distorções, refrações e manipulações que ajudaram na construção desse imaginário onde a fotografia era também incluída no escopo das artes visuais, sem nenhum compromisso com a verdade, o registro, o jornalismo. A nova fotografia integrante do movimento surrealista era derivada da matéria poética dos sonhos, das formas que parecem uma coisa e se transformam em outras, das narrativas sem pé nem cabeça. Era liberta do seu papel de atestado técnico.

Foto de Fernando Lemos

Erwin Blumenfeld, em sua espirituosa exploração de materiais, trouxe o aprendizado com a patota surrealista para o meio comercial, desenvolvendo sua fotografia de moda em território americano com as pitadas fortes de surrealismo e dadaísmo que o levaram a se tornar um dos grandes expoentes da fotografia.

Foto de Erwin Blumenfeld

💭Mas se você reparar, como tudo que o ser humano toca, o movimento surrealista também carrega suas contradições. Apesar de revolucionário e liberto, como em outros movimentos artísticos mundiais, poucas eram as mulheres que tinham a oportunidade de se aproximar. Posteriormente, artistas incríveis como Remedios Varo, Flor Garduño, Graciela Iturbide, Dora Maar e Grete Stern vieram a se tornar também grandes representantes do movimento, com impactantes obras da pintura à fotografia.

💡Em parceria com a revista Idílio, Grete Stern, desafiou-se a realizar um trabalho em co-autoria com os leitores: transformaria o relato dos sonhos enviados para o periódico em imagens surrealistas desenvolvidas a partir da colagem. Esse trabalho super especial pode ser visto de pertinho no livro Os Sonhos de Grete Stern, que vendemos por muito tempo na lojinha do f/508 e hoje está esgotado pela editora.

Imagens de Grete Stern

Não é de hoje que o sonho vira matéria poética para produção artística, a começar pelo surrealismo. Mas a verdade é que pouco sabemos sobre seus significados reais, e adorei escutar a reflexão da Regina Giannetti no podcast Autoconsciente. Sobre isso, também vale conhecer um pouco da história do Sidarta, na rádio escafandro. Ainda não li, mas o seu livro O oráculo da noite, com seus estudos relacionados aos sonhos, está dando o que falar (tanto no Brasil, quanto em Portugal).

E você? Já explorou os sonhos como assunto para produção pessoal e artística? Aliás, comentei antes por aqui sobre utilizar a inteligência artificial do Midjourney para produzir, e acho uma ótima ferramenta para criação surrealista. Vou deixar de novo pra vocês o meu guia prático pra começar.

✨Para ler, ver e ouvir

Há algum tempo fizemos um apanhado de referências surrealistas pra vocês, que postamos no instagram do f/508. Se você perdeu, aproveita que vou listar todas por aqui!

👁️Filmes surrealistas: A Montanha Sagrada (1973); Um Cão Andaluz (1929); A Cor da Romã (1968); O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004); A Origem (2010); Cisne Negro (2010); Mãe! (2017); You, the living (2007); Mais Estranho que a Ficção (2006); Quem Quer Ser John Malkovich (1999); Vanilla Sky (2001); O Grande Hotel Budapeste (2014)

📚Leituras surrealistas: A Metamorfose — Franz Kafka; Kafka a Beira Mar — Haruki Murakami; Crônica do Pássaro de Corda — Haruki Murakami; A Paixão Segundo G.H. — Clarice Lispector; 1984 — George Orwell; A Vida Invisível de Addie Larue — V. E. Schwab; A Dança de Pedra do Camaleão — Ricardo Pinto; As Crónicas do Mar e da Terra — Sandra Carvalho

🎧Podcast surrealista: Se você ainda não escutou Tempos Suspensos, vale MUITO a experiência. Adoro o trabalho de design de som impecável e o mergulho. Importante ouvir com fones de ouvido.

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Beijinhos e até a próxima,
Raquel Pellicano
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